6.7.2021

O Capital da Carne como Super Propagador

O Capital da Carne como Super Propagador
O Agronegócio Como Propulsor da Pandemia de COVID-19 e de Outras Doenças

Texto publicado originalmente em março de 2021 pela Bündnis Marxismus und Tierbefreiung (Aliança pelo Marxismo e a Libertação Animal) na revista “Das Fleischkapital. Zur Ausbeutung von Arbeitern, Natur und Tieren” (O Capital da Carne. Sobre a exploração dos trabalhadores, da natureza e dos animais).

Por Christian Stache e Christin Bernhold
Traduzido por Rafaela Debastiani. Revisado por Gabriel Maggioni e Rebecca Borges

Mesmo antes de 2020, a questão não era mais se haveria uma pandemia global. A economia mundial capitalista mudou muito o ecossistema da Terra nos últimos dois séculos. Suas intervenções na natureza criaram e colocaram em circulação inúmeros patógenos, tornando-os um problema para a humanidade. Para o ecólogo humano sueco Andreas Malm, a economia capitalista é, portanto, a “força motriz geral” por trás do surgimento de novos vírus e sua rápida disseminação.

Portanto, era apenas uma questão de quando e onde uma epidemia global começaria. Sabendo disso, virologistas e epidemiologistas alertam há décadas sobre a disseminação de doenças infecciosas que podem ser transmitidas de animais para humanos e vice-versa (zoonoses) e podem afetar toda a humanidade. O aumento da ocorrência de SARS, MERS, Ebola e variantes da gripe nas últimas duas décadas indica uma tendência que atingiu um clímax preliminar, mas provavelmente não o último, na atual pandemia do coronavírus.

Os protagonistas da destruição capitalista da natureza, que sempre gera novos perigos para a saúde humana, são acima de tudo as empresas oligopolistas da agricultura e da carne. Segundo o biólogo americano Robert Wallace, sua produção e distribuição de mercadorias são “perfeitamente organizadas para acelerar a evolução dos patógenos e sua posterior transmissão”. Portanto, se o sistema social, no qual a maioria das pessoas, animais e natureza está subordinada à acumulação de lucros, é o motor geral das epidemias, o agronegócio é especial — é um super propagador de germes de todos os tipos e níveis de risco.

Caixa de Pandora na Natureza Selvagem

A história do SARS-CoV-2 é uma evidência eloquente disso. De acordo com o conhecimento atual, o novo coronavírus foi das florestas chinesas a um mercado de animais silvestres na cidade de Wuhan, onde infectou consumidores e vendedores. Seus hospedeiros originais, provavelmente morcegos, estão à venda nestes mercados, bem como os pangolins, que são suspeitos de terem atuado como hospedeiros intermediários.

Existem duas razões principais pelas quais as pessoas estão cada vez mais em contato com essas espécies e para que o SARS-CoV-2 fosse, então, capaz de passar dos animais para os humanos. Primeiro, a caça à vida silvestre aumentou, já que o negócio de carne de caça na China tem sido bastante lucrativo até agora. Nos últimos tempos, cerca de 14 milhões de chineses geraram vendas anuais de 74 bilhões de dólares neste setor. A demanda por carnes de caça aumentou recentemente, especialmente entre os ricos.

O vírus então se espalha ao longo das cadeias pelas quais os animais selvagens e sua carne são comercializados. Os trabalhadores diaristas, cujos ganhos mal são suficientes para o seu sustento, abastecem os comerciantes de grandes mercados em Wuhan e em outras metrópoles do mundo com produtos de luxo. Os patógenos, aos quais os trabalhadores são geralmente expostos primeiro, são inadvertidamente entregues aos compradores de criaturas exóticas. Legal e ilegalmente, os animais — e, portanto, os vírus — chegam a todos os lugares, por exemplo, à Alemanha, um dos principais mercados de venda de animais silvestres de todo o mundo.

Em segundo lugar, as razões para a transmissão do SARS-CoV-2 de animais para humanos incluem o desenvolvimento e valorização em constante crescimento de terras para a agricultura industrial ou para o cultivo de monoculturas destinadas ao comércio (cash crops) e à ração animal. Como as florestas virgens estão cada vez mais sendo derrubadas, os caçadores de animais selvagens são forçados a penetrar cada vez mais nas florestas e em ecossistemas anteriormente fechados.

A probabilidade de se infectar com um patógeno raro dessa forma e, em seguida, transmiti-lo involuntariamente, aumenta enormemente. Por outro lado, a destruição dos habitats de morcegos, pangolins e semelhantes faz com que os animais agora se desloquem para onde as pessoas vivem. Com o avanço das corporações do agronegócio e da pecuária nos habitats desses animais, os nichos ecológicos e a biodiversidade que naturalmente contêm os patógenos também estão desaparecendo.

Em outras palavras, a fome de lucro está fazendo com que os comerciantes de carne de caça e traficantes de animais silvestres — duas frações menores do capital da carne -, bem como as grandes empresas do agronegócio e pecuária, transformem terras e animais em mercadorias. Como resultado, eles continuam abrindo a caixa de Pandora escondida nos últimos remanescentes da selva, na qual não apenas o SARS-CoV-2 estava adormecido. Todas as novas epidemias dos últimos anos surgiram de maneira semelhante. Robert Wallace, portanto, parte do princípio de que, atualmente, não há patógenos “livres do capital” — seu surgimento e disseminação podem ser rastreados até a economia capitalista em todos os lugares.

Outro exemplo é o vírus Ebola, que foi transmitido a humanos na Guiné, na África Ocidental, em 2014. Devido ao grande desmatamento para construção de plantações no decorrer da integração do país ao mercado mundial como fornecedor de óleo de palma, o contato entre raposas voadoras (morcegos frugívoros) — importante reservatório do ebola — e as pessoas ali se ampliou. Resultado: de acordo com a Organização Mundial de Saúde, cerca de 28.000 pessoas foram infectadas na Guiné, na Libéria e em Serra Leoa, e 11.000 morreram. Os números não relatados são muito mais altos.

Criadouros de Pandemias

Enquanto a precificação, relevante para a pandemia, da natureza e dos animais silvestres pelas corporações do agronegócio e da pecuária ocorre em sua maioria na periferia do capitalismo, empresas no centro do sistema capitalista mundial também dão sua contribuição para que doenças infecciosas se espalhem de forma rápida e ampla pelo mundo. Wallace vê a “criação intensiva de aves e gado” como o “caldeirão no qual surgem muitos dos patógenos animais virulentos”. O engenheiro ambiental Drew Pendergrass e o historiador ambiental Troy Vettese também acreditam que a pecuária industrial contribuiu muito para “nos trazer de volta à Idade da Pedra da saúde pública.”

A indústria da carne é um verdadeiro criadouro de pandemias. Para a pecuária, os genes dos animais foram manipulados de forma a servirem apenas para um fim específico, isto é, para pôr ovos ou para aumentar a massa de carne dos animais. Uma das primeiras formas dessa exploração animal — a manipulação genética por meio da reprodução — já foi descrita por Karl Marx como “disgusting” (“nojenta”). Hoje já se sabe que o uso de engenharia genética não só mutila os animais, mas também faz com que, no decorrer do tempo, os animais percam quase todas as suas barreiras imunológicas naturais, e se infectem imediatamente, na primeira oportunidade, assim que algum outro animal se infecte com uma doença. Isso ocorre principalmente quando os animais são amontoados em grandes grupos em um espaço confinado, no que Marx chama de “sistema de cela de prisão”. Essas condições de vida os colocam sob tamanho estresse que seu sistema imunológico fica ainda mais enfraquecido.

O rápido fluxo de animais na reprodução, criação e abate também é um terreno fértil para a transmissão e disseminação de vírus e outros patógenos porque há constantemente novos animais hospedeiros. Além disso, o abate industrial aumenta a virulência, ou seja, a capacidade de um patógeno de colonizar um organismo e os danos que causa neste corpo hospedeiro. Outra forma importante de distribuição geográfica das doenças zoonóticas é o transporte de animais. Nem é preciso dizer que os animais não são apenas trazidos para a vizinhança de outros animais, mas também de humanos. Hoje os animais não são mais comercializados “apenas” regionalmente, mas também internacionalmente. Os seres vivos abatidos na Alemanha não vêm necessariamente de lá. A rede global e a distribuição do capital da carne, desde a criação até o abate, estão alimentando a infecção por patógenos e a expansão espacial de epidemias. Desta forma, por exemplo, a “gripe aviária” (H5N1) espalhou-se mundialmente a partir do Sudeste Asiático no início deste século.

No contexto de tentativas semelhantes, mas qualitativa e quantitativamente menos pronunciadas, de subjugar a natureza, Friedrich Engels corretamente advertiu que a natureza “se vingaria” por alegadas “vitórias humanas” sobre ela. Seguindo esse pensamento, pode-se, como faz o jornalista Matthias Becker, considerar “a dinâmica evolutiva dos microrganismos e das zoonoses” como a “nêmesis” da indústria da carne. Eles são “uma espécie de poluente industrial vivo” (Wallace) que o capital da carne gera tão sistematicamente quanto o CO2 ou a destruição da natureza por meio do desmatamento da floresta tropical e do rebaixamento dos animais a meios de produção. Como observam os sociólogos John Bellamy Foster e Intan Suwandi, a “etiologia das novas pandemias”, ou seja, as relações causais entre epidemias de proporções internacionais, é parte do “problema abrangente da destruição ecológica pelo capitalismo”.

“Solução” para a Crise do Coronavírus à la Tönnies

Sabe-se que o risco à saúde causado pelas zoonoses interessa apenas parcialmente a magnatas como Clemens Tönnies, ao clã Batista, chefe do conglomerado brasileiro de carnes JBS, ou seus parceiros nos EUA e na China. Claro, eles têm que aceitar perdas quando um patógeno ataca animais em uma de suas criações e matadouros. Parte do seu capital produtivo é perdido porque os animais doentes não são tratados clinicamente — não é lucrativo — mas “abatidos”.

A exploração de trabalhadores, animais e natureza pelo oligopólio internacional da carne garante lucros suficientes, mesmo que algumas populações de animais infectados não possam ser utilizadas. Além disso, as epidemias estão limpando os mercados: dão suporte ao processo de concentração no setor de carnes, o que favorece os gigantes do setor porque as pequenas empresas não conseguem compensar as perdas com o abate, enquanto as grandes podem. Como é costume no capitalismo, os custos dos danos consequentes à saúde humana são socializados. Isso significa que os Estados e, como resultado da saúde cada vez mais privatizada e economizada, principalmente os subalternos têm de pagar pela proteção da saúde e pelos custos médicos.

O principal exemplo disso é o caso Tönnies. O principal produtor de carne da Alemanha não apenas estabeleceu condições de trabalho e de vida que aumentam muito o risco de infecção entre os trabalhadores contratados, mas também deliberadamente assumiu o risco de infectar pessoas fora de suas fábricas quando, após a disseminação do COVID-19 no país, com a bênção do governo federal — “relevante para o sistema!” — deixou a produção continuar e, como resultado, mais de 2.000 empregados em sua unidade de processamento principal foram infectados com o vírus na primavera de 2020. Como se a ousadia não bastasse, o empresário bilionário reivindicou então que o Estado arcasse com os custos salariais no período em que as linhas de abate tiveram que ficar paradas. No final das contas, ele rejeitou categoricamente qualquer responsabilidade pelo surto regional da epidemia, cujo foco da crise foi a sede da sua empresa em Rheda-Wiedenbrück.

Em sua defesa, Tönnies afirma que meramente o equipamento técnico inadequado de suas empresas de produção de carne é responsável pela transformação delas em focos regionais de infecção. De fato, sistemas especiais de ventilação e resfriamento estimulam a disseminação do vírus. Mas essas tecnologias não são a origem das infecções nem a única causa de sua disseminação.

Atribuir problemas socioecológicos, como as pandemias, somente a técnicas inadequadas, é uma expressão do eco-modernismo burguês — ou seja, a estratégia de tentar resolver esses e outros problemas principalmente por meio do desenvolvimento de novas forças produtivas. No entanto, isso apenas prolonga o status quo e é, portanto, o oposto do que é necessário para produzir e viver não apenas socialmente e de maneira apropriada para a espécie, mas também de forma sustentável e saudável. Se os agentes causadores de doenças e infecções surgem do capital agrícola e da carne e seus ciclos, eles também devem ser combatidos aí. Isso só funciona se a produção de alimentos e a agricultura forem convertidas e colocadas sob controle democrático. Portanto, política de saúde também é luta de classes.